segunda-feira, 17 de março de 2014

A PRESENÇA DO SOMBRIO NAS RELAÇÕES AFETIVAS (Wanderley Oliveira)

 
"Podem dois seres, que se conheceram e estimaram, encontrar-se noutra existência corporal e reconhecer-se?"

Reconhecer-se, não. Podem, porém, sentir-se atraídos um para o outro. E, frequentemente, diversa não é a causa de íntimas ligações fundadas em sincera afeição. Um do outro dois seres se aproximam devido a circunstâncias aparentemente fortuitas, mas que na realidade resultam da atração de dois Espíritos, que se buscam reciprocamente por entre a multidão." O livro dos espíritos, questão 386.
As atividades noturnas do centro espírita Servidores da Luz haviam iniciado pontualmente às vinte horas. Após a oração preparatória, a equipe de médiuns deslocou-se para as cabines de atendimento em pequeno salão reservado. Macas limpas e bem dispostas, além de material asséptico, estavam disponíveis para cada grupo de médiuns e atendentes.

Em uma das cabines, o médium Antonino, sob orientação mediúnica de dona Maria Modesto Cravo, começou a tarefa. Entrou um casal. Um homem com seus 45 anos e uma mulher com seus 35. Dona Modesta, já incorporada no medianeiro, os cumprimentou:

— Que Deus os abençoe, meus filhos!

— Assim seja, dona Modesta! - respondeu o homem.

— 0 que os traz nessa casa, meus filhos?

— Dona Modesta, meu nome é Eduardo e essa é Ana Elisa, minha esposa.

Vivemos um momento muito difícil no casamento. Para ser franco, estamos aqui como última alternativa para ouvi-la, e saber se pode nos ajudar a vencer essa prova.
0 que se passa entre vocês, meus filhos? - indagou dona Modesta com acolhimento.
Ana Elisa não acredita nos assuntos do espiritismo. Ela veio aqui a meu pedido e a contragosto, então vou explicar para a senhora. No centro que frequento, depois de alguns momentos de conflito em meu casamento, solicitei uma mensagem mediúnica. O mentor foi claro e me informou que tenho um carma com Ana Elisa. A partir de então, esclarecido como fui, passei para ela as noções sobre esse assunto e procurei alertá-la a respeito dos motivos que geram nossos conflitos.
Ana é uma executiva, trabalha muito, temos um nível de vida financeira muito alto, por conta do meu trabalho e do dela, mas não precisamos de tanto. Tentei focar com ela a importância da vida simples, propus que ela largasse seu ofício e passássemos a ter outro tipo de vida. Ela não precisa se preocupar com o lado material, que para mim seria fácil garantir. No entanto, a resistência dela a ter filhos, a cuidar do lar e a abrir mão de uma vida materialista está praticamente impedindo qualquer mudança. Depois da mensagem mediúnica recebida há quase um ano, passei a ser mais rigoroso com esse compromisso de orientá-la espiritualmente, mas parece que ela é mais difícil do que eu supunha.

Entendo. Então o senhor está querendo salvá-la, é isso?

Eu não diria salvá-la. Apenas dar um impulso na reencarnação dela que está muito focada na vida material. Eu peço sua ajuda, dona Modesta. Fale algo para minha esposa. Pode ser sincera conosco.

Claro meu irmão. Nem precisa pedir. Serei bem sincera. Como o senhor acha que vai dar esse impulso na reencarnação dela?

Levando-a para o espiritismo e enquadrando-a nas atividades.

E ela quer isso?

Infelizmente não, dona Modesta. Ela ainda não abriu os olhos para a espiritualidade. Teima em manter-se cega.

E o senhor já abriu os seus próprios olhos para a espiritualidade?

Sim, graças a Deus, dona Modesta! A senhora concorda comigo que se ela viesse para a doutrina nossos conflitos terminariam?

0 espiritismo está sendo mesmo bom para o senhor?

Demais. É minha vida, meu alimento, meu eixo. Então o senhor está seguindo os ensinos espíritas?
Com toda minha devoção e esforço.

E acha mesmo que melhorou ou que tem melhorado?

— Muito. Dona Modesta, estou me tornando outra pessoa.

— Como?

— Hoje colaboro nas visitações a hospitais, dou minha contribuição ao asilo, tomo passes que me acalmam, leio muitos livros e participo de três reuniões de estudo.

— Não é dessa melhora que estou falando. Isso, em verdade, não é melhora.

— Não?

— Isso é exercício, tarefa de aprimoramento que, necessariamente, não significa medida de melhora pessoal.

— Se isso não é melhora, não sei então do que a senhora está falando.

— A melhor forma de aferir nossa melhora pessoal, meu filho, é verificar como andam nossas relações com as pessoas de nossa convivência, especialmente com as pessoas que amamos. Que tal ouvir aqui a sua esposa a respeito disso?

— Ah, dona Modesta! Ana Elisa não acredita em minha melhora, com certeza!

A mulher, que estava calada até então, não se conteve e disse:

Dona Modesta, para ser sincera com a senhora, nem sei se acredito que há aqui na minha frente um espírito falando comigo, mas sua linha de raciocínio me agrada. Obrigada por querer me ouvir, porque meu marido, infelizmente, não tem se permitido fazê-lo. Ele parece ter se fanatizado após essa bendita mensagem do além. Nem sei mais quem ele é nesses últimos meses. Tudo é espiritismo, desapego, humildade, estudo, tarefa. E eu, que segundo ele sou o problema por tanto trabalhar, estou mais em casa à espera dele do que ele. Ele espera muito de mim e nada tem dado ao nosso casamento. Parece-me que ele acredita tanto nessa mensagem, que eu tenho dúvidas sobre o que ele sente por mim. Ele hoje está ao meu lado porque tem um carma comigo, enquanto eu estou ao lado dele porque tenho amor para com ele.

Amor que está adoecendo, se acabando. Está ficando difícil, dona Modesta, e para ser mais honesta, impossível. A última coisa que eu quero na vida é um salvador. Eu quero meu marido de volta. Ele me trouxe até aqui dizendo que ao ouvi-la eu me convenceria de tudo que ele diz. Ou eu estou louca ou nem sei o que é, mas cada vez que ouço suas palavras tenho a sensação de que senhora o coloca para um exame de consciência e ele foge disso. Estou louca, dona Modesta? Como acreditar na melhora dele? Quem é o louco nesse casal?

Não, minha filha, você não está louca. Sua fala é curativa e libertadora. Se seu marido lhe trouxe aqui para que eu a convencesse de algo, ele está equivocado. Não tenho a menor pretensão em tornar alguém espírita. Minha missão é colocar a consciência ao encontro da verdade. 0 que você me diz disso, Eduardo?

Acho que minha esposa não está bem mesmo. Suspeito de uma obsessão, para chegar ao ponto de dirigir à senhora dessa forma. Ela buscou a terapia recentemente e piorou ainda mais, porque agora parece cada dia mais distante de mim.

E tenho alternativa, Eduardo? Se eu me aproximar de você nas condições em que se encontra, eu me afasto de mim mesma para fazer suas vontades. Eu desisto de mim mesma.

Então você prefere me abandonar? Você não enxerga mesmo. A senhora está vendo, dona Modesta? Olha isso que ela disse! É a prova que eu precisava para mostrar à senhora como estou certo. Que esposa diria uma coisa dessa, dona Modesta? Seja sincera!

Eu serei, Eduardo. A esposa que diria uma coisa dessas é uma esposa que tem autoestima e que se ama, antes do amor que possa dar a qualquer pessoa. De uma pessoa que se ilumina com tão autêntico amor a si própria só pode irradiar o amor legítimo em favor de quem a rodeia.

A senhora me desculpe, para mim isso é egoísmo.

Não, Eduardo. Você se ilude profundamente nos seus conceitos. Egoísmo é quando não estamos bem com nossa vida e adoramos transformar os outros para nos sentir melhor conosco mesmos. Egoísmo, meu filho, é o que você está fazendo com seu casamento. Você está mais interessado em salvar sua mulher do que em amá-la. Mais interessado em mudá-la do que em examinar seu próprio egoísmo.

E existe uma prova de amor maior que querer salvar quem amamos?

Não salvamos ninguém, Eduardo. Você foi enganado. Que espécie de mentor espiritual é esse que dita uma mensagem para incendiar a mente com o combustível da ilusão? A única pessoa nesse mundo que podemos salvar é a nós mesmos e, nem isso, muitas vezes, temos dado conta, e ainda queremos salvar os outros. Exigir dos outros é mais cômodo. Não somos responsáveis por ninguém, meu filho, a não ser por nós próprios. Com as pessoas que amamos temos responsabilidades, o que é bem diferente de ser responsável.

Dona Modesta, eu jamais quero questionar um espírito de luz como a senhora, mas, me perdoe, preciso então que a senhora me explique por que eu receberia uma mensagem dessas.

Para testar seu bom senso em relação às obsessões camufladas que nos cercam em supostas mensagens de guias.

A senhora está brincando! Vinda pelo médium que veio? - falou com ironia.
Qual médium está isento, meu filho, de alguma interferência obsessiva? Existem alguns conceitos na cultura espírita, na forma de interpretar o espiritismo, que se tornaram nocivos relativamente ao comportamento e ao entendimento humano. Essas questões do carma e da obsessão, são alguns desses conceitos que foram profundamente deturpados por uma herança religiosa descaridosa e carregada de culpa.

Carma não é com o outro. 0 resgate não é com o outro, e sim com o que ficou dentro da gente em função do que fizemos ao outro. São os registros de lesão que precisam ser mudados. 0 sofrimento da presença do outro em nova reencarnação apenas ativa dentro de nós o que ficou armazenado em nosso íntimo. Nós não mudamos ninguém. Somos apenas portadores de oportunidades aos outros. 0 que eles vão fazer com isso é com eles. Só mudam ou usam as oportunidades se quiserem ou se optarem por valorizá-las. Carma, no sentido de quitação e solução de pendências, é com a gente mesmo, é com nossa consciência.

Em verdade, você, Eduardo, está exigindo de Ana o que quer para você mesmo. Ela está bem na forma como vive. Os excessos que você vê nela estão em você mesmo. Você sim, por conta da visão de vida nova à luz da imortalidade, está precisando de mais meditação, menos impulso possessivo com o dinheiro, maior presença no lar e proximidade afetiva de sua esposa.

0 seu sombrio é polarizado na insegurança, no medo, um dos sentimentos mais difíceis de serem enfrentados. Você recrimina em Ana o que mais precisa adquirir, a coragem, a força de se envolver com os bens materiais sem possessividade. Seus impulsos de apego e controle sempre foram desordenados e além de suas forças. 0 seu sombrio se retrata no luminoso de Ana. Estou certa?

Mas e a mensagem, dona Modesta?

Muitas mensagens mediúnicas deveriam ser esquecidas por respeito aos médiuns. Tenha opinião pessoal, Eduardo. 0 grande objetivo do espiritismo é nos promover à autonomia das opiniões e da conduta. A doutrina não propõe cegueira, e sim fé ativa, fé robusta. Desligue-se do conteúdo da mensagem e conecte-se com seu sentimento.

Então, eu venho aqui para a senhora ajudar minha esposa e o que ouço é que eu estou cego?

Engano seu, eu estou ajudando sua esposa mais do que você imagina, não é mesmo, Ana?

Dona Modesta, depois dessas suas palavras, estou quase acreditando em espiritismo - respondeu Ana, sorridente e com expressão de alívio.

Eu devo estar mesmo cego. Ouvir isso de Ana é surpreendente. Como a senhora fez isso, dona Modesta?

É simples. Estou reforçando o amor que Ana tem a si mesma. Não posso colaborar com ninguém que queira amordaçar essa conquista.

E eu, com minha atitude, estou fazendo isso.

Fazendo, não. Está tentando. Todavia, com uma mulher maravilhosa como a que você tem, eu duvido que consiga. Possivelmente você vai perde-la se continuar tentando.
****
A resposta dada pelos guias espirituais a Allan Kardec à questão 386 de 0 livro dos espíritos é um compêndio de psicologia transpessoal: "Um do outro dois seres se aproximam devido a circunstâncias aparentemente fortuitas, mas que na realidade resultam da atração de dois Espíritos, que se buscam reciprocamente por entre a multidão".

Buscamos energeticamente nas pessoas de nossa convivência o sombrio e o luminoso que estão na nossa própria intimidade. Projetamos, dessa forma, no outro as nossas necessidades e também nossos talentos adormecidos. Nossas relações afetivas são, por isso, laboratórios de revelação de nossas camadas mais profundas da psique.

No outro, nos vemos e nos revelamos. Aquilo que apreciamos no outro pode ser o ponto de equilíbrio para o nosso sombrio, entretanto, por conta do egoísmo e das crenças enraizadas, podemos transformar o remédio em veneno e passar a tentar destruir esse ponto luminoso do outro, repudiando o que mais precisamos para nós.

Por essa razão, o autoconhecimento por meio de uma educação emocional lúcida nos permite um exame mais consciente do que é nosso no outro e o que é do outro em nós.

Os estudos psicológicos no mundo dos espíritos à luz do espírito imortal deixam claras quais são as três ilusões mais presentes no processo de integração entre o luminoso e o sombrio dentro de nós e
que costumam transformar o nosso amor em sofrimento.

A primeira ilusão é acreditar que nosso amor é capaz de modificar quem nós amamos. Não modificamos ninguém e ninguém é capaz de nos modificar se não houver identificação de propósitos e decisão pessoal de mudança. Só mesmo a prepotência pode advogar a ideia de transformação contra a vontade de alguém e intoxicar o amor com raiva e amargura. É essa prepotência que gera a insanidade de acreditar que podemos salvar até quem não quer ser salvo, levando pais, mães, maridos, esposas e famílias inteiras à dor da culpa e da impotência. 0 nosso amor não será suficiente para resolver problemas que o outro tem de resolver, e isso somente se ele quiser. 0 que de fato realiza as mudanças verdadeiras chama-se responsabilidade pessoal.

A segunda ilusão é acreditar que somos responsáveis pelas escolhas de quem amamos. Quando amamos legitimamente, reforçamos os aspectos saudáveis de quem amamos e não ficamos tentando controlar a vida deles para que não adotem condutas destrutivas. Quando nos sentimos responsáveis pelas escolhas alheias, dispostos a fazer todo sacrifício, como se isso fosse amor abandonamo-nos e tiramos nossas forças, nossa motivação e nossa lucidez. Em uma relação de amor legítima não há autoabandono. Quando isso ocorre, existe sacrifício, e o sacrifício traz a mágoa, as expectativas e as cobranças. Dor na relação é indício de que há necessidade de um aprendizado da parte de quem sofre. Quando você impede alguém de fazer escolhas, ele não aprende e ainda interpreta isso como uma mensagem subjetiva de que não acreditamos em sua competência. 0 aprendizado só será feito quando o outro tiver autorresponsabilidade.

A terceira ilusão é acreditar que amar é creditar à pessoa amada uma importância maior do que a nós próprios. É uma atitude de autoabandono que é a origem da depressão. A lei da natureza nos prepara para a autossuficiência, e, mesmo havendo a lei de sociedade na qual nos amparamos mutuamente e cooperamos uns com os outros, fomos dotados de recursos autoimunizadores para sobreviver independentemente do amor alheio. Se colocamos alguém como a pessoa mais importante da nossa existência, estamos na contramão da evolução e corremos um enorme risco de nos abandonar para cuidar de quem supomos ser mais importante.

Isso tem muito mais a ver com egoísmo do que com amor. Quando damos importância superlativa ao outro, estamos, em verdade, tentando nos realizar no outro, nos sentimos importantes tentando mudar o outro ou fazer algo de bom ao outro para nos sentirmos com algum valor. Essa é uma atitude nociva e que reflete a baixa autoestima e a educação que muitos de nós recebemos para agradar os outros se quisermos ser amados.

Essas três ilusões sombrias, quando iluminadas pelo ensino de Jesus de amar ao próximo como a ti mesmo, alinham-se com as leis universais de sabedoria e equilíbrio, colocando-nos a caminho da cura pessoal.

Nenhum comentário:

Postar um comentário