No Inferno, todos vestem roupas brancas
por
Denise Terra
Ainda
não amanheceu, estamos diante da chuva e do frio do inverno
gaúcho à espera do ônibus que irá nos guiar até um dos
maiores matadouros do RS. Somos estudantes de medicina
veterinária, cursando uma disciplina obrigatória de inspeção
de produtos de origem animal. A maioria de nós encontra-se
eufórica, à espera dos ‘momentos emocionantes’ do dia. Eu
estou em um canto, sendo observada de perto pela professora
e o coordenador do curso, que ao saberem que sou vegana e
ativista, temem que eu tenha um colapso na linha de matança.
Entramos no ônibus e seguimos viagem. No caminho, a sensação
de que as cenas que eu teria que presenciar não seriam
diferentes daquelas filmadas clandestinamente em matadouros
ao redor do mundo, e ao mesmo tempo o sentimento inequívoco
de que estaria prestes a presenciar uma série de crimes
considerados ‘necessários’ pela humanidade.
Chegamos! Ao abrir a porta do ônibus, já somos tomados pelo
impregnante odor adocicado da matança das aves que ocorre
dentro do estabelecimento. Adentramos o local, após termos
vestido roupas brancas especiais, e começamos a visita no
sentido contrário ao fluxo produtivo para evitar
contaminações no produto final. Trata-se de um corredor
estreito, com o pé direito baixo, quase um túnel, que
desemboca em uma luz amarela intensa, para repelir insetos.
Nossa guia, então, abre a porta e entramos na parte final da
produção. Um sistema complexo de esteiras e ganchos,
chamados nórias, passam por nossas cabeças, e neles estão
fixadas pelas patas as carcaças de frango, que pingam
incessantemente uma gordura fétida acrescida da água
hiperclorada utilizada em sua higienização.
Sob as
esteiras estão os funcionários que trabalham em pé, diante
de uma bancada, na maioria mulheres, que nos olham com
curiosidade e espanto. A expressão em seus rostos é de uma
tristeza marcante, mesclada pelo cansaço físico dos
movimentos repetitivos que têm que executar diariamente. O
barulho do local é ensurdecedor e, conforme andamos, o
cheiro forte torna- se cada vez mais desagradável. Em cada
bancada, os funcionários devem desempenhar uma função,
chamadas de linhas de inspeção, que são classificadas por
letras do alfabeto. Em cada letra ocorre a retirada
padronizada de determinados órgãos. Um grupo de mulheres,
muitas sem luvas, trabalham retirando com as mãos, com uma
destreza impressionante, a vesícula biliar das carcaças em
processo de evisceração. Mais adiante, outra funcionária
dedica-se a ‘pescar’ com uma barra de metal as carcaças que
caem no chão, para destiná-las à graxaria, onde serão
transformadas em produtos não-comestíveis. Durante a
passagem das nórias podemos observar que cada uma apresenta
uma marcação com uma cor, o que serve para fazer a contagem
final dos frangos por produtor e repassar o lucro referente
ao dia.
Uma
máquina especial remove toda a carne restante presa nos
ossos, que farão parte da liga que irá compor os caros e
adorados nuggets. Estamos agora diante dos chillers,
equipamentos responsáveis pelo aquecimento seguido de um
resfriamento rápido das carcaças, com a finalidade de
eliminar contaminantes biológicos da carne. Os chillers nada
mais são do que grandes piscinas vermelhas de sangue com
partículas de gordura que ficam boiando na superfície, onde
os frangos ficam embebidos.
Olho
para o chão e tudo o que vejo é sangue e uma quantidade
absurda de água que parece verter de todos os lados para a
limpeza das carcaças – estima-se que para a limpeza de cada
carcaça de frango se gaste em média 35 litros de água!
Desvio o olhar para cima e vejo carcaças sangrentas passando
por minha cabeça, pois estamos nos aproximando do início do
processo, quando começam a surgir aves com cabeças e penas,
que são retiradas em uma máquina específica, o que deixa o
chão lotado de penas brancas.
Nossa
guia nos avisa que estamos chegando à linha de matança. Há
uma diminuição abrupta da luz, onde funcionários trabalham
quase no escuro. Os índices de depressão dos funcionários
que exercem essa função são extremamente elevados, devido à
insalubridade. Trata-se do início do processo de
insensibilização. A luz é reduzida com a finalidade de
reduzir a atividade e o estresse dos animais, que são
extremamente sensíveis a este estímulo. A esteira segue com
as aves penduradas na nória pela pata, de cabeça para baixo
e agora passam por um túnel, onde sofrem eletronarcose –
isto é, são molhadas e eletrocutadas, de modo que isso as
atordoe, mas sem causar a morte. As galinhas seguem
estáticas pela esteira, onde logo encontram uma serra, que
fica presa a uma espécie de roda, e têm suas gargantas
cortadas. Nossa guia nos explica que dependendo do tamanho
das aves a altura da lâmina deve ser ajustada, para reduzir
a margem de erros no corte mecanizado.
Na
sequência, algumas galinhas encontram-se com o pescoço
intacto, enquanto outras, mesmo com a traquéia perfurada,
começam a se mexer, visivelmente conscientes. Um funcionário
tem então como tarefa cortar o máximo de pescoços de
galinhas que falharam na serra automática, mas a esteira
passa em uma velocidade assustadora, são muitas aves que
devem morrer hoje para atender à demanda do mercado, cada
vez mais voraz por carne de frango. Não há tempo para cortar
o pescoço de todas as intactas, nem de abreviar o sofrimento
daquelas que se debatem. As aves seguem para serem
escaldadas em água fervendo.
Fomos
levados ao local do recebimento das cargas. Vemos caixas e
caixas com mais aves do que espaço interno, em algumas há
mais de dez animais. São tantas que muitas estão fora das
caixas, respiram ofegantes, com o bico aberto pelo estresse
e pelo medo. Elas estão há dez horas em jejum, sendo
permitido o abate somente até doze horas após o início do
jejum. O trabalho segue em ritmo frenético. Uma colega
encontra uma galinha solta e a pega, colocando-a, de forma
orgulhosa, em outra caixa que segue na esteira rumo à serra
automática, emitindo um comentário de que estava feliz por
ter conseguido pegá-la. Descemos as escadas e nos deparamos
com o caminhão que as trouxe. Somos instruídos a não passar
muito perto, pois poderíamos ser bicados pelas aves
apinhadas dentro das caixas. Nos afastamos um pouco e, em
poucos momentos, vemos aves soltas em cima do caminhão. Elas
tentam voar mas não conseguem, e muitas acabam caindo direto
no chão. Um funcionário aparece com um gancho e as junta
pelas patas, como se fosse inços em meio a grama.
Violentamente, ele junta o máximo de aves que pode pegar com
cada mão. As aves estão penduradas apenas por uma das patas.
Então, alguém lembra que ele poderia ser mais delicado e
pensar no ‘bemestar’ animal, afinal, deste modo, os frangos
podem apresentar lesões graves como rupturas e fraturas, o
que compromete o retorno financeiro pela carcaça.
Somos
encaminhados para uma espécie de área de descanso dos
funcionários, onde esperamos pelo veterinário responsável
pelo setor de suínos para nos acompanhar na visita deste
setor. Neste momento uma funcionária, escorada por mais duas
colegas, passa em estado de choque por nós. Ela estava
sangrando muito na mão. Acabou de sofrer um acidente de
trabalho. Ela chora muito, a lesão parece grave. Uma colega
nossa se manifesta rindo, dizendo que não vai comer o frango
que ela estava eviscerando na hora que se machucou! Muitos
acham graça e riem. Mais à frente vejo uma placa dizendo
‘Estamos a ZERO dias sem acidentes de trabalho’ e, logo
abaixo, ‘Recorde sem acidentes:83 dias’.
No
setor de suínos, passamos pelo mesmo ritual de antissepsia e
adentramos outro corredor estreito com luzes amarelas. Meu
nariz ainda está impregnado com o cheiro da morte das
galinhas e meus ouvidos ainda não se acostumaram ao barulho
estridente das máquinas, que são fortemente audíveis mesmo
com o uso de protetores auriculares. Uma porta se abre, e
atrás do veterinário estão centenas de carcaças de porcos
mortos pendurados pela pata traseira, passando pela esteira.
O tamanho do animal impressiona. O veterinário nos conta que
ali são abatidos 2350 suínos por dia! Os funcionários agora
são em sua grande maioria homens, muitos aparentemente se
orgulham de sua função, e riem enquanto serram o abdômen do
animal e retiram as vísceras. Neste setor a esteira anda
mais lentamente, devido ao tamanho do animal e a menor
quantidade de animais que estão sendo abatidos, quando
comparado ao setor de aves. Há sangue por tudo.
Para
caminhar, temos que desviar das carcaças de 100 kg
penduradas sobre nossas cabeças. Os funcionários realizam
seu trabalho em etapas específicas da produção, uns arrancam
a cabeça, enquanto outros em outra parte da sala removem os
órgãos internos e outros ainda são responsáveis pela
identificação de qual cabeça pertence a que corpo, através
de um sistema de numeração para posterior inspeção de
possíveis lesões que possam causar danos à saúde pública.
Mais à frente vemos uma impressionante sequência de dezenas
de porcos abatidos subindo de uma andar ao outro pelo
sistema de esteiras. Somos convidados a ir até o andar de
baixo onde ocorre a sangria. Para chegarmos lá temos que
descer uma escada helicoidal estreita e escorregadia, devido
à presença de gordura suína sob nossas botas. No meio desta
escada existe uma espécie de calha por onde passam os
animais mortos, ainda cheios de sangue. Nossa roupa está
tapada de respingos de sangue.
De
repente a temperatura do ambiente muda e começamos a sentir
um calor e um barulho atípicos do lugar. Olho então para
frente e vejo a cena de uma carcaça pendurada por uma pata
passar por uma espécie de jogo automatizado de chamas.
Durante os poucos segundos que dura o processo, podemos ver
as carcaças envoltas de uma labareda azul, e sentimos um
forte cheiro de pêlo queimado. As labaredas são utilizadas
para eliminar os resquícios de cerdas após a remoção dos
pêlos, previamente removidos por um sistema de borrachas.
Chegamos finalmente na sangria. Os gritos estrondosos dos
animais deveriam fazer qualquer um perceber que não é
possível existir bem-estar diante da banalização da morte.
Ao invés disso, muitos riem cada vez que um suíno é
grosseiramente empurrado por um funcionário, munido de uma
vara capaz de disparar choques de baixa intensidade, em
direção a uma espécie de escorregador totalmente fechado dos
quatro lados. No fim do escorregador está um funcionário de
aparência assustadora com uma barra com uma espécie de ‘U’
na ponta. O ‘U’ é encaixado na cabeça do animal e suas
pontas ficam em contato com a região temporal do crânio,
onde um choque de grande intensidade é disparado. O animal
cai como uma pedra, gerando um barulho característico de seu
corpo desabando sobre a esteira metálica. Muitos apresentam
contrações involuntárias nas patas, e parecem estar dando
coices. Com uma destreza impressionante o funcionário
seguinte corta a garganta do animal. Através do orifício na
traquéia jorram litros de sangue. O veterinário nos explica
que neste momento o animal ainda não está morto, mas que
“conforme as boas práticas de bem-estar animal, estes devem
morrer dentro de no máximo seis minutos”, após ocorrer a
total eliminação do sangue pelo bombeamento cardíaco. Na
verdade, o real motivo para que não se aceite a morte do
animal em tempo superior a este, é evitar que a carcaça
fique PSE – ‘pale, soft, exsudative’, ‘pálida, friável,
exsudativa’, pois este tipo de produto não apresenta a
qualidade necessária exigida pelo mercado, e
consequentemente há perda nos lucros.
Somos
levados até os currais onde podemos ver os suínos vivos
serem empurrados para o escorregador. Eles estão em pânico,
uns sobem sobre os outros, enquanto nos olham fixamente nos
olhos com a real expressão do horror. Os gritos tornam-se
cada vez mais altos e o funcionário os empurra com o bastão
de choques. Mais atrás está outro funcionário com uma
espécie de relho feito de sacos plásticos, e o desfere
contra o lombo dos animais para estes andarem na direção da
matança. O veterinário nos explica que o relho é feito deste
material para não machucar os animais. Isto constituiria
crueldade, algo condenável pelo ‘bem-estar animal’, valor
muito importante dentro da empresa, e que poderia acarretar
em lesões cutâneas, afetando negativamente o valor da
carcaça.
Por
fim, podemos ver os currais de chegada, onde os caminhões
descarregam diariamente os animais para o abate. É neste
local que deve ser feita a inspeção ante-mortem pelo
veterinário da inspetoria. De acordo com os preceitos da
humanização da morte, todos aqueles animais que chegam com
fraturas na pata e que não conseguem mais se locomover
adequadamente devem ser removidos em separado e enviados
para a matança imediata, isto é, devem ter o direito de
‘furar a fila’ a fim de que o seu sofrimento seja abreviado.
O veterinário, com muito orgulho, faz questão de dizer que
“o processo precisa ser feito”! E que já que é necessário,
“é preciso fazê-lo com dignidade e respeito pelos animais”;
Ele ainda afirma que na indústria é possível assegurar que
estes animais não passam por sofrimento, e que o seu fim é
muito menos cruel do que seria se fossem predados por um
leão na natureza!
Neste
momento, é difícil conter o riso diante da tortuosidade do
raciocínio exposto. Em local algum do mundo teríamos mais de
2000 suínos sendo predados em cadeia por leões vorazes,
sistematicamente, todos os dias. Ao que consta, leões não
têm a capacidade de raciocínio semelhante a um humano. Eles
não podem fazer escolhas, simplesmente porque não têm como
refletir sobre as consequências dos próprios atos. Leões não
planejam estrategicamente como irão matar suas presas a fim
de terem lucro com isso, e tampouco consideram normal a
condição de degradação de outros seres de sua própria
espécie em prol da satisfação do luxo de outros poucos.
Apenas o ser humano é capaz de ter estratégias para a
exploração máxima de todos aqueles capazes de sofrer sem de
fato considerar isso. Hoje, muito se fala sobre bem-estar
animal, porém trata-se apenas de um modo mais refinado de
justificar injustificáveis fins.
O
bem-estar animal agrada a muitos, pois consegue suavizar o
sofrimento e a culpa daqueles que sustentam a indústria da
morte, e ajudam a aumentar os lucros através de medidas que
teoricamente são adotadas para beneficiar os animais, mas
que são norteadas pelo aumento da produtividade e qualidade
do produto final. O limite do ‘bem-estar animal’ vai até
onde o marketing e o lucro podem vislumbrar. É inacreditável
que, para a grande maioria, ingenuamente, esse ainda seja
visto como o caminho para o fim do sofrimento. O sofrimento
animal apenas poderá ser reduzido quando criarmos coragem
para defender o direito dos animais, através da abolição do
consumo de seus corpos para a satisfação fugaz de nossos
desejos egoístas.
*
Denise Terra é formanda em Medicina Veterinária
http://vanguardaabolicionista.wordpress.com/2010/07/12/no-inferno-todos-vestem-roupas-brancas/
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