Seria possível tornar um relacionamento amoroso caminho espiritual?
Cada ser humano concebe sua existência
através de uma cadeia inter-dependente de relações com outros seres.
Somos quem somos por um processo de relação com nossos pais, filhos,
parentes, amigos, colegas de trabalho e assim por diante. Somos seres de
relação. A visão de Buddha nomeada Pratitya Samutpada traz a
noção literal de “originação através de uma relação co-dependente.” O
conceito de eu sou parece estar separado dos outros, porém, quando
investigado se revela exatamente como Buddha percebeu – um processo de
co-dependência e relação contextual aromatizada por pré-disposições
mentais.
Nossa vida é uma reprodução
‘cinematográfica’ de um drama, romance, suspense, comédia e ação,
surgida a partir dos mais variados e inacreditáveis processos de
relações conscientes e inconscientes. Entre as relações mais favoráveis
para uma oportunidade de rápida transformação interior estão os
relacionamentos amorosos ou em família.
Todos buscamos ser felizes. Portanto,
vamos também em busca de felicidade ao iniciar um relacionamento. Porém,
nossa felicidade nas relações amorosas encontra-se na maioria dos casos
basicamente na dependência de sensações de prazer e desprazer.
Com frequência dizemos ‘eu te amo,
independente do que aconteça, irei te amar para sempre.’ Contudo,
inexplicavelmente, nossa condição amorosa muda quando nosso parceiro(a)
deixa de produzir as mesmas sensações prazeirosas (cognitivas e físicas)
em nosso ser. Já perceberam isso?
Dizemos ‘eu te amo’ mas o fato é que
amamos a nós mesmos, amamos as sensações produzidas pelo outro em nosso
psicofísico. Não importa se o outro esta feliz ou não e se há uma razão
para ele estar agindo de determinada forma. Eu deixo de amá-lo porque
ele deixou de me fazer feliz. Tudo bem, acontece, é natural, buscamos
por felicidade individual também. Porém, isso ainda não é verdadeiro
amor. O amor pleno, todo abrangente, ama genuinamente o outro e a si
próprio simultâneamente.
Nosso coração, sentimentos e pensamentos
são dirigidos e modulados por energias de hábito, impressões mentais que
controlam nossa vida – Eu gosto quando você me trata assim. Não gosto
quando você age de tal forma. Nosso bem-estar é dirigido por estes
registros internos, modulados por pré-concepções auto-centradas,
tendências egoístas que são cegas para o outro e percebem somente
sensações boas ou ruins. Chega a ser vergonhoso constatar nosso
auto-centramento. Estamos grande parte de nosso tempo idolatrando a si
próprios, sendo escravos de nossas sensações e conceitos.
Entretanto, há um segredo aí. O
auto-centramento revela uma capacidade de conhecer, nutrir e proteger um
bem-estar quando posicionado a partir de um referencial que percebe as
coisas de forma mais lúcida, sensata, coerente. Descobrimos que nosso
corpo, energia e pensamentos são dirigidos a partir de um ângulo ou
referencial interno. Podemos ampliar nosso referencial e nos
encontrarmos naturalmente mais próximos dos princípios de como realmente
a vida, incluindo o universo externo como também o interno, são
regidos.
Verdadeira felicidade nas relações será
possível se operarmos a partir de um software interno mais amplo, um
universo cognitivo que vai além de uma visão auto-centrada e estreita.
Seremos mais felizes com nosso companheiro(a) na medida que
desenvolvermos mais e mais liberdade frente a estas modulações habituais
que dirigem nossa energia e formos capazes de olhar a vida a partir de
uma perspectiva mais inclusiva, que abrange os pensamentos e sentimentos
do outro.
Dizemos: “Ok, entendo. Faz sentido. Mas e aí, como faço?”
O truque é o amor genuíno, a bondade amorosa, maitri em sânscrito. O Amor vê, percebe, discerne. É sensível, acolhedor, despreocupado com resultados. É paciente, gentil e aberto. Se nossa atitude estiver fundada no amor genuíno, cada instante de nossa vida será pleno, consciente, desconstraído e apreciativo.
Quando reconhecemos o outro como parte de
quem somos, como elemento atuante na construção deste personagem
surgido através de relações contextuais, reconheceremos que nosso
bem-estar e felicidade esta diretamente dependente do bem-estar e
felicidade de nosso companheiro (a) como também de todos os outros com
quem nos relacionamos, direta ou indiretamente.
Nosso problema, muitas vezes, é o querer
estar sob controle. Cegos perante a verdade de que o bem-estar genuíno
surge da simplicidade, da abertura e curiosidade inteligente diante o
movimento natural do universo e dos seres, nos encontramos
constantemente insatisfeitos, movidos por medos, dúvidas e expectativas.
Imperceptíveis aos pensamentos e sentimentos do outro, também sofremos.
Nos sentimos inseguros por não ter controle sobre esses elementos.
Verdadeiro amor é transcendente, amplo, leve, aberto e incondicional.
Nos direciona a ir além da obdiência a impulsos auto-centrados. Eu olho
para o outro não com as lentes que buscam nele uma fonte de felicidade
mas com a perceção mais ampla que o inclui, que compreende igualmente
sua busca por bem-estar.
Como budistas reconhecemos que uma
independência verdadeira frente a nossos automatismos cognitivos e
emocionais só irá aflorar quando desenvolvermos um conhecimento profundo
sobre a operação e natureza de nossa mente. Estamos aqui para aprender e
amadurecer. O objetivo do caminho espiritual é nos tornar
verdadeiramente adultos. Este conhecimento de nosso universo interior e a
gradual segurança que surge a partir de nossa familiarização com ele
faz brotar um destemor saudável, lúcido e aberto. Não teremos mais medo
de errar nem nos moveremos por expectativas de acertar. Estamos simples e
honestamente abertos a viver, experimentar, conhecer e aprender com o
coração livre e leve.
Amor genuíno pode aflorar e se
desenvolver de várias maneiras. Uma forma é desenvolvida quando baseamos
nosso amor através da percepção da impermanência e transitoriedade de
todas as coisas – o movimento natural da vida e do viver. Disto surge
uma disposição apreciativa de si, do outro, do momento presente, das
condições e causas favoráveis. Surge energia e interesse em aprender a
cada instante. Interesse em aproveitar o máximo cada acontecimento, cada
situação, cada olhar, toque e palavra. Nossa natureza é dotada da
capacidade de experimentar o mundo, de conhecer, compreender, apreciar e
se apaixonar.
O amor compreende o outro. Esta ligado ao
que temos a oferecer e não ao que temos a ganhar. É dito que ao
conhecer e se desenvolver maestria dos potenciais naturais de nossa
mente passamos a ter muito mais a oferecer aos outros e ao mundo. Há
riqueza em um relacionamento que surge quando há confiança e regozijo
nas coisas boas que se tem a compartilhar.
Verdadeiro amor nos concede o potencial e
interesse de explorarmos as qualidades e potenciais de nosso
parceiro(a), mesmo que este potencial revele suas partes mais
vulneráveis. Como o amor não é condicional, esta livre do interesse
próprio e inclue o mundo do outro, as partes vulneráveis se tornam
caminho de transformação, de aprendizado e evolução mútua. Esse olhar
magnetiza nosso companheiro(a), atrai positivamente, guia e conduz. Nos
direciona ao verdadeiro amor, a relações mais duradouras, estáveis e
genuínas. A bondade amorosa nos capacita a acolher carinhosamente nosso
amado (a), a nutrí-lo oferecendo suporte para seu desenvolvimento, a
magnetizá-lo e guiá-lo a direções positivas, a protegê-lo e orientá-lo e
a partilhar da verdade das coisas e estar aberto a ouvir também sua
verdade.
O amor traz consigo o desejo sincero e
incondicional que se tem pelo bem-estar do outro, livre de interesses
auto-centrados. Passamos a não mais fugir baseados em nossos gostos e
não-gostos, mas a ter uma atitude espiritualmente madura que entende as
causas e condições que modulam nossos sentimentos como também do nosso
parceiro(a). Nos posicionamos lúcidos e hábeis a transformar nossas
relações através deste discernimento e da liberdade que surge dele.
Estamos mais sensíveis e percetíveis as causas que produzem bem-estar e
as condições que geram mal-estar.
Quando um relacionamento é baseado
nisto surge confiança e abertura. A raiva, o ciúmes, carências e
decepções diversas não encontram espaço e suporte, ou seja, condições
para surgirem. Cada ato, cada olhar, cada palavra, encontra-se
impregnada de amor e compreensão. Para o surgimento disto é necessário
abdicar de idéias fixas sobre o outro, sobre si e sobre a realidade
circundante. É necessário espaço, respiração e flexibilidade mental. É
preciso cultivar abertura, aceitação e empatia no coração.
Nos relacionamento encontraremos o
potencial de ampliar nossas qualidades e potenciais humanos. Será
revelado a nós nossos bloqueios e resistências que se apresentarão como
oportunidades mágicas de transcendência e evolução. Surge uma base
mágica e propícia para realizarmos a natureza e operação de nossas
mentes como também expandir seus potenciais e qualidades naturais.
É importante desenvolvermos a
inteligência de nos afastar um pouco quando um relacionamento se mostre,
depois de muitas e longas tentativas, insalubre. Porém, é necessário
discernir também nossa incapacidade naquele momento de magnetizar e
dirigir a relação numa direção positiva, de semear as causas e condições
que gerariam um bom relacionamento. Há momentos que nos encontraremos
destituídos de habilidades e estabilidade interna para reverter uma
determinada situação e, portanto, melhor nos afastarmos um pouco para
retomar nosso eixo, nosso equilíbrio e bom senso.
Haverão outros momentos que estaremos
preenchidos de amor e de uma motivação de transformar o que se
apresentar em caminho espiritual. Pegaremos na mão de nosso parceiro e
seremos sinceros: “Esta situação foi surgindo e não percebemos. Me ajude
a descobrir os elementos que levaram a isso e a explorar alternativas
que possam modificá-la.” Juntos, com amor, paciência, motivação e
discernimento os obstáculos se tornarão em caminho de transformação.
Em outros estágios nos encontraremos
vivendo oportunidades mais raras onde a própria situação de desconforto
se manifestará como um espelho da mente e de seus potenciais, de sua
capacidade de se colocar em referênciais estreitos e de se expandir em
direção a perspectivas muito amplas que inexplicavelmente se cegam a
detalhes importantes. Reconheceremos com humildade e certeza que nada é
fixo, sólido e que a mente é flexível, luminosa e incrivelmente
criativa. Saberemos que nossa natureza é bondosa, desobstruída e
realizadora. Que há uma dança natural onde a presença da carência
desperta o cuidado. Onde a presença do desejo desperta o poder natural
de preenchê-lo e realizá-lo. Onde a manifestação da raiva pede por
espaço, por acolhimento e escuta. A causalidade que opera em nossas
relações passa a ser apreciada em sua beleza, leveza e potencial, como
uma dança espontâneamente mágica. E que nos tornaremos senhores desta
dança na medida que dançarmos conforme a música do fluir natural e real
da vida.
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